sexta-feira, 11 de maio de 2018

Bibliografia para o Estudo da Bíblia como Literatura

Neste blog, procuramos analisar as narrativas bíblicas sob a ótica da Literatura. Indico alguma bibliografia que poderá ser útil a quem desejar aprofundar o estudo nesta área. 

Os críticos literários que tornaram-se referência ao analisarem a partir de seus pressupostos as narrativas bíblicas foram Erich Auerbach, com a obra Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (basta a leitura do primeiro capítulo, onde há um comentário à narrativa do sacrifício de Isaac); Northrop Frye, com O código dos códigos; Robert Alter, com o clássico A arte da narrativa bíblica e The five books of Moses: a translation with commentary; e Harold Bloom, com O Livro de J, Abaixo as verdades sagradas e Onde encontrar a sabedoria

No campo da exegese não há como deixar de mencionar Jean Louis Ska, com o ensaio Sincronia: a análise narrativa e o livro Abraão e seus hóspedes. João Leonel e Júlio Zabatiero reuniram em Bíblia, Literatura e Linguagem alguns artigos que versam sobre o tema. Yvan Bourquin e Daniel Marguerat têm um guia completo para a análise literária da Bíblia intitulado Para ler as narrativas bíblicas

Conhece algum outro interessante?


sábado, 31 de março de 2018

Duas mulheres aos pés da Cruz

Na narrativa da morte de Jesus segundo João, lemos: “Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena” (Jo 19,25 – tradução da Bíblia de Jerusalém). Essas figuras femininas situadas aos pés da cruz foram retratadas de diversas formas em pinturas e literaturas ao longo dos séculos, sem que deixassem de suscitar a curiosidade dos leitores do Quarto Evangelho. Juan Mateos e Juan Barreto consideram, apesar da ambiguidade do versículo citado, que sejam apenas duas mulheres junto à cruz. Segundo sua intepretação, o trecho seria melhor entendido da seguinte forma: Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe e a irmã de sua mãe, ou seja: Maria (a de Clopas) e Maria Madalena.
Maria, a filha de Clopas, seria a Mãe de Jesus, que aparecera no livro de João uma outra vez, no episódio das Bodas em Caná da Galileia. Nesse Evangelho, Maria é uma figura literária que representa o Israel antigo que, diante dos sinais de Jesus, reconhece nele uma possibilidade para a restauração esperada. Esta mulher é a figura daqueles que fielmente esperavam a intervenção de Deus em sua história, e que reconhecem que Jesus é um possível Messias.
Maria Madalena aparece aqui pela primeira vez e tornará a aparecer em uma das principais cenas joaninas: a da Ressurreição. Ela é figura da nova comunidade, aquela que, testemunhando os sinais do Senhor, desejam aderir ao seu projeto e firmar com ele uma aliança definitiva. Ela é, portanto, imagem de todos nós, que conhecemos o Senhor e com ele queremos permanecer.
Se avançamos na leitura do c. 19, descobrimos outro personagem importante: o discípulo amado. A exemplo de Madalena, ele é também o símbolo do povo da Nova Aliança, porque não é só alguém que ama Jesus, mas que é também por ele amado.
Jesus, desde o alto da cruz, integra à nova comunidade o grupo daqueles que pertenciam à Antiga Aliança, quando entrega a Mãe ao discípulo e este à mulher. O Evangelista esclarece: “E a partir dessa hora, o discípulo a recebeu em sua casa” (Jo 19,27). A comunidade antiga, da qual Maria, a mãe, é a figura, não mais voltará a aparecer no Evangelho de João porque agora ela foi incorporada à nova comunidade, que também está ali. Há, portanto, na cruz, duas Marias e duas comunidades que tornar-se-ão apenas uma: aquela que o Ressuscitado encontrará chorando no jardim do c. 20.
Dessa forma, João acena, já no c. 19, que a cena da morte não é o fim. A comunidade que caminhara com o Mestre e testemunhara, confiante, seus sinais não está desamparada. Como estrangeira, é recebida na casa de uma nova comunidade, para celebrar um novo banquete, uma Páscoa que acontece no terceiro dia após a sua. A morte de Jesus no Evangelho de João – e também na vida real – não indica fim ou encerramento de antigas coisas, mas acena para o novo e instaura a expectativa do que está por vir.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Evangelho de João - uma breve introdução

Imagem relacionadaDos Quatro Evangelhos canônicos, João é o que mais se diferencia pelo seu estilo literário, pelo seu viés teológico e por seus objetivos. Por isso, costumamos denominar Marcos, Mateus e Lucas de Sinópticos, porque narram os eventos ao redor de Jesus sob um mesmo olhar. João distancia-se destes três em vários aspectos. 
Uma primeira razão para justificar este distanciamento é sua época de redação. Enquanto Marcos foi escrito ao redor do ano 60 d.C. e Mateus e Lucas ao redor do ano 75 d.C., João foi escrito apenas no final do séc. I, talvez por volta do ano 90 d.C. Embora as diferenças não aparentem ser tão significativas, devemos considerar que Marcos, o primeiro evangelista, inaugura o gênero, ou seja, é o primeiro a escrever um Evangelho a respeito de Jesus Cristo e não tem precedentes em quem se espelhar. Assim, ele é bem mais breve e apologético. Aproxima-se mais da historicidade como a compreendemos hoje, porque era uma necessidade apresentar Jesus e levar as pessoas à fé. Sua distância temporal desde os eventos da Ressurreição de Jesus era de apenas 30 anos. Quando João escreveu, ao menos 60 anos após a Ressurreição, já não era necessário apresentar Jesus, porque ele escreve a uma comunidade que já professava a fé cristã. Assim, ele podia escrever uma teologia mais desenvolvida e mais refletida, narrando os eventos a respeito de Jesus de uma maneira diferente da que os Sinópticos haviam utilizado. Além disso, ele dispunha dos Três Evangelhos - além de outros apócrifos - como fonte. 

Há diversas hipóteses quanto à autoria do Quarto Evangelho. A que preferimos é a de que João seja obra de uma comunidade, não apenas de uma pessoa. Esta comunidade, reunida ao redor da tradição do Discípulo Amado que muitos identificam como sendo o jovem João, utilizou-se de seu nome e de sua figura para dar legitimidade ao seu texto. Toda a comunidade, guardiã das tradições e reflexões a respeito de Jesus, que se originaram desse Discípulo Amado, foi quem escreveu o Evangelho. Ele destinava-se, originariamente, à própria comunidade. Por isso parece ser um texto codificado, profundamente enraizado nas tradições hebraicas, como datas importantes de festas judaicas ou convenções e  estilos literários que se aproximam da Bíblia Hebraica. O Evangelho de João não é antijudaico como se costuma afirmar. Pelo contrário: retoma os principais temas da Bíblia Hebraica e funda-se sobre as principais tradições judaicas. Podemos dizer que o Evangelho de João, em sua origem, não teve pretensão nenhuma de transmitir uma mensagem universal para as futuras gerações. Não queria nem mesmo conduzir à fé os que não criam em Jesus. Seu objetivo era apenas corroborar a fé daqueles que já professavam uma fé propriamente cristã.

Como o Quarto Evangelho surge já no fim do séc. I, foi uma necessidade lidar com nascentes más compreensões do Cristianismo, que posteriormente seriam denominadas heresias. As duas principais correntes de pensamento contra as quais o Evangelho de João levanta-se são o gnosticismo e o docetismo. O gnosticismo acreditava que a matéria é algo ruim, oposta ao espírito e obstáculo à salvação. Por isso, em diversos trechos, o Evangelho de João ressalta a humanidade de Jesus, como quando narra sua angústia ao presenciar a morte do amigo Lázaro ou quando coloca-o sentado, cansado e com sede à beira de um poço. Para João, não há a dualidade corpo/espírito como instâncias antagônicas. O docetismo entendia que a humanidade de Jesus é apenas aparente, e ele na verdade era somente Deus. Assim, há mais um motivo para que João reafirme a humanidade de Jesus e principalmente seu sofrimento ao redor dos eventos de sua Paixão, a fim de reafirmar que Jesus era tão homem quanto Deus, e sua humanidade era real e acarretava todas as consequências físicas e sentimentais próprias do humano.

Continue acompanhando as próximas postagens!


quarta-feira, 3 de maio de 2017

Quando o padrão esperado não acontece: desvios na cena do casamento de Isaac


Resultado de imagem para rebeca bibliaNa última postagem falamos sobre a convenção da cena de casamento. Mais importante que observar o que se repete de uma cena à outra talvez seja perceber o que deveria acontecer e não acontece. Residem nestes desvios as principais características que os autores bíblicos esconderam por detrás de suas linhas tão bem alinhavadas. 
Na cena do casamento de Isaac nossa primeira expectativa como leitores é frustrada: não é Isaac quem vai buscar sua noiva, não é ele quem viaja. É o servo de seu pai quem vai em seu lugar. Quem desloca-se na narrativa é a mulher, Rebeca. 

O deslocamento para estes três homens - Isaac, Jacó, Moisés - é fundamental porque faz parte de seu amadurecimento, a fim de que sejam capazes de liderar em primeiro lugar suas vidas, e em segundo, a vida de seu povo. Como na cena de Isaac quem faz esta viagem é a mulher, Rebeca, o que podemos esperar é exatamente o que ocorre: é ela quem tem a liderança sobre sua vida e sobre a história que compartilha com Isaac a partir dali. 
Quando Rebeca chega à proximidade da tenda de Isaac e o vê, a narrativa revela sutilmente a desatenção de Isaac, pois ele vê apenas os camelos. Ele a introduz na tenda de sua mãe Sara, e somente assim consola-se de sua morte, como se tivesse encontrado uma nova figura materna, de proteção, cuidado e orientação. Conhecemos o restante da história do casal: Rebeca fará com que tudo saia conforme seus planos, enganado o marido, para que seu filho preferido - Jacó - receba a bênção que era de Esaú, por direito. 
Isaac, primeiro submetido à vontade do pai, passa a responder às vontades de Rebeca. Diante dela, é inexpressivo e sem autonomia. O simples desvio do padrão esperado para uma cena comum de casamento já acenava para isto. 
Acompanhe!

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Um tipo especial de convenção: a cena padrão de casamento


Imagem relacionada
As narrativas encontradas em Gn 24, Gn 29 e Ex 2 narram três casamentos especiais que acontecem segundo um roteiro semelhante. Este é mais um exemplo do uso brilhante de particulares convenções na construção da literatura bíblica. O recurso da cena padrão pode ser encontrado também em outras literaturas, mas aparece com grande significado na Bíblia Hebraica. 

O padrão sobre o qual agora desejamos deter nossa atenção é o de casamento. Nas referidas cenas, o noivo é um viajante em terra estrangeira, que, cansado pela viagem, para junto a um poço. Dele aproxima-se uma moça - que futuramente será sua noiva - e há, por uma das partes, o pedido pela água. Bebendo da água retirada do poço, a moça corre à sua casa para contar sobre a chegada do estrangeiro, que fica hospedado em sua casa. Estabelece-se ali o compromisso matrimonial, geralmente celebrado com um banquete.
O que faz com que os autores bíblicos utilizassem o padrão que detalhamos? Talvez a convenção fosse algo muito conhecido, de modo que esta maneira de narrar antecipava algo do que estava por acontecer. Em outras palavras: a maioria das pessoas, quando ouvia começar a história de alguém, que, viajando cansado, parava junto a um poço, já esperava uma cena de casamento.
A utilização do padrão para Isaac, Jacó e Moisés talvez tivesse o objetivo de interligar de alguma maneira a história destes homens importantes em Israel. De fato, Isaac é o primeiro que realiza a promessa feita por Deus a Abraão, porque é diretamente responsável pela descendência atribuída ao pai. A descendência que gera é dependente de seu casamento, e ele precisa de uma mulher forte e decidida, para que possa estabelecer com êxito sua linhagem. É compreensível que Jacó  esteja situado na mesma linha de narrativas, já que é o patriarca que sucede a Isaac. Já Moisés, talvez tenha sido incluído na lista porque, após Jacó, não temos a história de algum patriarca segundo os três primeiros, mas quem desempenha a função de garantir a continuação e expansão do povo é Moisés. Além disso, o momento marcado por sua fuga do Egito é propício para sua identificação como israelita verdadeiro.
Diversas conclusões provêm da leitura comparada destes cenas.
Aguarde as próximas postagens!

quarta-feira, 19 de abril de 2017

O reconhecimento na história de Judá e Tamar

A narrativa encontrada no capítulo 38 do livro do Gênesis é um tanto quanto estranha aos olhos do leitor que dela se aproxime pelas primeiras vezes. Basta observarmos que os capítulos finais do livro tratam da história de José, o filho mais novo de Jacó que, vendido aos ismaelitas, foi dado como morto por seu pai. 
Inserida no meio desta longa novela, a narrativa de Tamar parece destoar dos capítulos que estão ao seu redor, no entanto, apresenta referências que a situam como uma breve cena emoldurada pelo enredo dos demais capítulos. 
Gostaríamos aqui de realçar um destes aspectos, qual seja, o do reconhecimento. O tema que perpassa esta narrativa e estabelece sua ligação com a narrativa de José é exatamente este, como bem observara Robert Alter em A arte da narrativa bíblica (2007). Judá é envolvido pela estratégia de Tamar por não reconhecê-la: ele vê suas vestes e pensa que é uma prostituta. Depois, quando se diz que ela está grávida, ele ainda não reconhece ser seu o filho, apenas reconhecerá aquilo que é o distintivo de si mesmo: o anel, o cordão e o cajado, deixados como penhor. 
Judá é traído pela incapacidade de reconhecer a verdade assim como traíra o pai Jacó, fazendo-o crer que José estava morto. O objeto do engano é o mesmo: uma veste que parece ser o que não é. Jacó também fora enganado ao ver as vestes do filho e pensar que havia morrido. Aliás, o sangue nas vestes de José pertencia a um cabrito morto para forjar a mentira. Judá promete um cabrito para encobrir a verdade de seu relacionamento com a suposta prostituta. 
O ciclo das histórias de Jacó parece ser cheio do que de maneira popular chamamos aqui se faz, aqui se paga: Jacó engana o pai Isaac e depois é enganado pelos filhos; Judá engana o pai Jacó e depois é enganado por Tamar; os irmãos mais novos de José enganam o pai e depois são enganados pelo irmão. 

quinta-feira, 9 de março de 2017

Lembranças da mulher de Ló

Li, um dia desses, um pequeno, simples e grandioso artigo de uma autora norte-americana chamada Rebecca Goldstein, intitulado Lembranças da mulher de Ló. Rebecca divide com quem lê seus escritos uma inquietação que a acompanha desde criança, ao ouvir a narrativa da destruição de Sodoma e a transformação de Irit - nome da esposa de Ló segundo antigos midrashim - em sal.
Na história narrada no livro do Gênesis e interpretada pela tradição judaica, Irit olhara para trás à procura de sua família, na esperança de ver suas filhas correndo da destruição para a liberdade. Contrariando o mandato de Deus, que pedira que ninguém olhasse para trás, a mulher tornou-se sal.
Sua desobediência lembra a desobediência do Éden, que não foi negativa, mas ofereceu ao homem e à mulher a possibilidade do conhecimento do bem e do mal. Ao lado dessa desobediência positiva, Rebecca Goldstein aponta como cega a obediência de Abraão, que levaria seu próprio filho à morte por ordem de Deus. Há um contraponto na história de Rebeca e Isaac, se compreendemos que Isaac amou aquele que era desprezado, como um verdadeiro pai, enquanto Rebeca, friamente, despreza um filho em nome da preferência pelo mais novo. Pode ser a atitude de Rebeca identificada como a obediente aos desígnios de Deus, por assegurar a continuidade da história nascente de Israel conforme o desejo divino.
Segundo Rebecca, Irit reúne em si o impasse de todo aquele que deseja ser justo diante de Deus: deve-se fazer o que Deus ordena ou aquilo que os sentimentos e os desejos humanos exigem? Mais uma vez, sua leitura nos ajuda a perceber o quão sensível aos dilemas humanos a Bíblia Hebraica é, e o quão distantes nos tornamos dela quando fazemos aquela velha leitura demasiado espiritual de suas primeiras letras. A escritora encontra num comentário do século XIII uma resposta para suas inquietações, que gerou maiores em mim, e talvez também as faça surgir em você, que agora o lerá, conforme transcrevo:

"Rabi David Kimchi (...) aponta que, no Gênesis, está escrito que fogo e enxofre caíram sobre Sodoma. No Deuteronômio, contudo, quando Moisés, antes de morrer, pede que os filhos de Israel não repitam os pecados do passado, ele fala em enxofre e sal chovendo sobre a cidade condenada. Ao explicar a discrepância, Radak sustenta que, na verdade, todas as pessoas de Sodoma tornaram-se colunas de sal (...). Por isso, pelo menos de acordo com Radak, parece que a mulher de Ló não era a aberração espetacular que sempre pensei. Aconteceu o mesmo com todos os que ficaram para trás (...). Irit olhou para trás a fim de ver se suas duas filhas mais velhas estavam vindo, soube que não viriam e viu o que acontecera a elas. Em um momento de tamanha dor, só se tem um desejo: seguir o filho, experimentar o que ele experimentou, unir-se a ele em todos os aspectos do sofrimento. Para tornar-se um só com ele. E foi por causa deste desejo que Irit tornou-se uma coluna de sal. Ela foi transformada em sal porque Deus não pôde perdoar este desejo ou porque ele compreendeu" (GOLDSTEIN, 1995, p. 25).

A quem interessar, o texto completo faz parte de uma obra que muito me agrada e indico com segurança.
Boa leitura!


Referência:

GOLDSTEIN, Rebecca. Lembranças da mulher de Ló. In: BÜCHMANN, Christina; SPIEGEL, Celina (Orgs.). Fora do Jardim: mulheres escrevem sobre a Bíblia. Rio de Janeiro: Imago, 1995.