quinta-feira, 9 de março de 2017

Lembranças da mulher de Ló

Li, um dia desses, um pequeno, simples e grandioso artigo de uma autora norte-americana chamada Rebecca Goldstein, intitulado Lembranças da mulher de Ló. Rebecca divide com quem lê seus escritos uma inquietação que a acompanha desde criança, ao ouvir a narrativa da destruição de Sodoma e a transformação de Irit - nome da esposa de Ló segundo antigos midrashim - em sal.
Na história narrada no livro do Gênesis e interpretada pela tradição judaica, Irit olhara para trás à procura de sua família, na esperança de ver suas filhas correndo da destruição para a liberdade. Contrariando o mandato de Deus, que pedira que ninguém olhasse para trás, a mulher tornou-se sal.
Sua desobediência lembra a desobediência do Éden, que não foi negativa, mas ofereceu ao homem e à mulher a possibilidade do conhecimento do bem e do mal. Ao lado dessa desobediência positiva, Rebecca Goldstein aponta como cega a obediência de Abraão, que levaria seu próprio filho à morte por ordem de Deus. Há um contraponto na história de Rebeca e Isaac, se compreendemos que Isaac amou aquele que era desprezado, como um verdadeiro pai, enquanto Rebeca, friamente, despreza um filho em nome da preferência pelo mais novo. Pode ser a atitude de Rebeca identificada como a obediente aos desígnios de Deus, por assegurar a continuidade da história nascente de Israel conforme o desejo divino.
Segundo Rebecca, Irit reúne em si o impasse de todo aquele que deseja ser justo diante de Deus: deve-se fazer o que Deus ordena ou aquilo que os sentimentos e os desejos humanos exigem? Mais uma vez, sua leitura nos ajuda a perceber o quão sensível aos dilemas humanos a Bíblia Hebraica é, e o quão distantes nos tornamos dela quando fazemos aquela velha leitura demasiado espiritual de suas primeiras letras. A escritora encontra num comentário do século XIII uma resposta para suas inquietações, que gerou maiores em mim, e talvez também as faça surgir em você, que agora o lerá, conforme transcrevo:

"Rabi David Kimchi (...) aponta que, no Gênesis, está escrito que fogo e enxofre caíram sobre Sodoma. No Deuteronômio, contudo, quando Moisés, antes de morrer, pede que os filhos de Israel não repitam os pecados do passado, ele fala em enxofre e sal chovendo sobre a cidade condenada. Ao explicar a discrepância, Radak sustenta que, na verdade, todas as pessoas de Sodoma tornaram-se colunas de sal (...). Por isso, pelo menos de acordo com Radak, parece que a mulher de Ló não era a aberração espetacular que sempre pensei. Aconteceu o mesmo com todos os que ficaram para trás (...). Irit olhou para trás a fim de ver se suas duas filhas mais velhas estavam vindo, soube que não viriam e viu o que acontecera a elas. Em um momento de tamanha dor, só se tem um desejo: seguir o filho, experimentar o que ele experimentou, unir-se a ele em todos os aspectos do sofrimento. Para tornar-se um só com ele. E foi por causa deste desejo que Irit tornou-se uma coluna de sal. Ela foi transformada em sal porque Deus não pôde perdoar este desejo ou porque ele compreendeu" (GOLDSTEIN, 1995, p. 25).

A quem interessar, o texto completo faz parte de uma obra que muito me agrada e indico com segurança.
Boa leitura!


Referência:

GOLDSTEIN, Rebecca. Lembranças da mulher de Ló. In: BÜCHMANN, Christina; SPIEGEL, Celina (Orgs.). Fora do Jardim: mulheres escrevem sobre a Bíblia. Rio de Janeiro: Imago, 1995.




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