Numa leitura desatenta das primeiras linhas do Gênesis, é
bem comum não perceber detalhes importantes que dizem respeito ao modo de narrar
a criação do mundo por Deus. Procuramos, neste pequeno texto, indicar algumas
percepções que podem ajudar a compreender de modo novo qual era a concepção dos
antigos escritores hebreus com relação a este tema.
Os dois primeiros capítulos do Gênesis tratam da Criação do
planeta, de tudo o que nele existe, e principalmente do homem. Tratam também do
relacionamento entre o homem e a totalidade da Criação. No entanto, os dois
capítulos não formam uma narrativa linear: ao contrário, são duas narrativas
justapostas que apresentam substanciais diferenças entre si.
Observemos a princípio que o primeiro relato é o que se
inicia em Gn 1,1 e é concluído em Gn 2,4a: “Essa é a história da criação do céu
e da terra”. É uma narrativa completa, marcada pelos paralelismos e repetições,
que lhe conferem ritmo e um belo estilo. Cada etapa da criação conclui-se em um
de seus sete dias, encerrados pelo passar de uma tarde e uma manhã e pela
constatação, da parte de Deus, de que sua obra é boa. No sexto dia, Deus criou
o homem. É imprescindível perceber que, segundo este primeiro relato, Deus cria
o ser humano à sua imagem, macho e fêmea. Abençoando-os, pede que povoem a
terra e entrega-lhes, como dádiva, toda a criação. Ao final do sexto dia, Deus
olha para a totalidade da criação e percebe que “tudo era muito bom” (v.31),
não só o ser humano criado.
O segundo relato é o que começa em Gn 2,4b: “No dia em que
YHWH Deus fez a terra e o céu, (...)”. No princípio deste relato, nada ainda
havia sido criado, o que já deixa claro que o trecho não pode ser mera
continuação do anterior. Não há repetições e nem mesmo a marcação dos sete
dias. Esta narrativa parece mais simples do ponto de vista do estilo e mais
suscinta, apresentando apenas duas fases no processo da criação: a criação do homem
e a criação da natureza.
A exegese bíblica atual concorda que as duas narrativas não aparecem em ordem cronológica quanto à sua redação: a segunda é mais antiga que a primeira. Enquanto Gn 1,1–2,4a provavelmente tenha sido composta no período exílico, por volta do séc. VI
a.E.C., o relato de Gn 2,4b-25 talvez seja obra que remonta ao séc. X a.E.C.
Abaixo, procuramos estabelecer um paralelo entre as duas
narrativas, colocando em relevo semelhanças e diferenças:
Gn
2,4b-25
(mais
antigo)
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Gn
1,1–2,4a
(mais
recente)
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Narrativa linear
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Narrativa marcada pela repetição, que evidencia a conclusão de cada
um dos sete dias da criação, como encerramento de um ciclo criacional e
início de outro.
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Não há marcação de tempo. Todos os acontecimentos do relato podem ter
ocorrido em um só dia, ou num conjunto maior de dias.
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A criação conclui-se em sete dias.
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Ordem da criação:
- Terra e o céu
- Homem
- Árvores e plantas
- Animais
- Mulher
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Ordem da criação:
- Luz
- Firmamento
- Terra, mar, vegetação
- Sol, lua e estrelas
- Aves e seres do mar
- Animais terrestres
- Ser humano (homem e
mulher)
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Primazia da água
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Primazia da luz
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Tudo é cultivado e moldado por Deus.
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Tudo é criado pela palavra de Deus.
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Não se menciona o sábado.
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No sétimo dia Deus descansa. Observe-se que, na época do exílio, era
necessário reforçar o preceito de guardar o sábado, que estava ameaçado pelo
contato com outras culturas, nas quais não figurava esta prática.
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O homem é criado do pó do solo, da terra (relação com a terra
cultivável), e sua vida é resultado do sopro divino.
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Homem e mulher são criados de modo simultâneo, à imagem e semelhança
de Deus.
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A mulher é criada a partir do homem (esta é uma das primeiras narrativas
de que se tem notícia no Oriente antigo que conta a criação da fêmea).
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Continua!
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