segunda-feira, 6 de março de 2017

Duas histórias para contar a Criação

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Numa leitura desatenta das primeiras linhas do Gênesis, é bem comum não perceber detalhes importantes que dizem respeito ao modo de narrar a criação do mundo por Deus. Procuramos, neste pequeno texto, indicar algumas percepções que podem ajudar a compreender de modo novo qual era a concepção dos antigos escritores hebreus com relação a este tema.
Os dois primeiros capítulos do Gênesis tratam da Criação do planeta, de tudo o que nele existe, e principalmente do homem. Tratam também do relacionamento entre o homem e a totalidade da Criação. No entanto, os dois capítulos não formam uma narrativa linear: ao contrário, são duas narrativas justapostas que apresentam substanciais diferenças entre si.
Observemos a princípio que o primeiro relato é o que se inicia em Gn 1,1 e é concluído em Gn 2,4a: “Essa é a história da criação do céu e da terra”. É uma narrativa completa, marcada pelos paralelismos e repetições, que lhe conferem ritmo e um belo estilo. Cada etapa da criação conclui-se em um de seus sete dias, encerrados pelo passar de uma tarde e uma manhã e pela constatação, da parte de Deus, de que sua obra é boa. No sexto dia, Deus criou o homem. É imprescindível perceber que, segundo este primeiro relato, Deus cria o ser humano à sua imagem, macho e fêmea. Abençoando-os, pede que povoem a terra e entrega-lhes, como dádiva, toda a criação. Ao final do sexto dia, Deus olha para a totalidade da criação e percebe que “tudo era muito bom” (v.31), não só o ser humano criado.
O segundo relato é o que começa em Gn 2,4b: “No dia em que YHWH Deus fez a terra e o céu, (...)”. No princípio deste relato, nada ainda havia sido criado, o que já deixa claro que o trecho não pode ser mera continuação do anterior. Não há repetições e nem mesmo a marcação dos sete dias. Esta narrativa parece mais simples do ponto de vista do estilo e mais suscinta, apresentando apenas duas fases no processo da criação: a criação do homem e a criação da natureza.
A exegese bíblica atual concorda que as duas narrativas não aparecem em ordem cronológica quanto à sua redação: a segunda é mais antiga que a primeira. Enquanto Gn 1,1–2,4a provavelmente tenha sido composta no período exílico, por volta do séc. VI a.E.C., o relato de Gn 2,4b-25 talvez seja obra que remonta ao séc. X a.E.C.
Abaixo, procuramos estabelecer um paralelo entre as duas narrativas, colocando em relevo semelhanças e diferenças:
Gn 2,4b-25
(mais antigo)
Gn 1,1–2,4a
(mais recente)
Narrativa linear
Narrativa marcada pela repetição, que evidencia a conclusão de cada um dos sete dias da criação, como encerramento de um ciclo criacional e início de outro.
Não há marcação de tempo. Todos os acontecimentos do relato podem ter ocorrido em um só dia, ou num conjunto maior de dias.
A criação conclui-se em sete dias.
Ordem da criação:
- Terra e o céu
- Homem
- Árvores e plantas
- Animais
- Mulher
Ordem da criação:
- Luz
- Firmamento  
- Terra, mar, vegetação
- Sol, lua e estrelas
- Aves e seres do mar
- Animais terrestres
- Ser humano (homem e mulher)
Primazia da água
Primazia da luz
Tudo é cultivado e moldado por Deus.
Tudo é criado pela palavra de Deus.
Não se menciona o sábado.
No sétimo dia Deus descansa. Observe-se que, na época do exílio, era necessário reforçar o preceito de guardar o sábado, que estava ameaçado pelo contato com outras culturas, nas quais não figurava esta prática.
O homem é criado do pó do solo, da terra (relação com a terra cultivável), e sua vida é resultado do sopro divino.
Homem e mulher são criados de modo simultâneo, à imagem e semelhança de Deus.
A mulher é criada a partir do homem (esta é uma das primeiras narrativas de que se tem notícia no Oriente antigo que conta a criação da fêmea).


 Continua!
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